Em 2009, a companhia sueca Vattenfall iniciou uma acção contra a Alemanha a respeito da construção de uma central a carvão no rio Elba. O governo de Hamburgo aprovou legislação ambiental com o objectivo de proteger a qualidade das águas fluviais, antes ainda de aprovar o contrato final para a construção da central. A Vattenfall alegou que tais exigências iriam tornar o projecto inviável e que isso resultaria numa «expropriação indirecta»: exigia ser indemnizada em 1400 milhões de euros, não pelos danos que tinha sofrido (quase residuais: a construção não tinha tido início), mas por ver goradas as suas expectativas de lucro.
Dificilmente um tribunal alemão daria razão a tão disparatada pretensão. Mas a Vattenfall não recorreu a um tribunal alemão: ao invés, recorreu a um sistema de justiça privada chamado ISDS1, um sistema que arbitra sem ter como referência as leis nacionais, mas sim os acordos de comércio que o estabelecem. Um sistema que não tem qualquer tipo de recurso e no qual os árbitros que tomam as decisões beneficiam financeiramente caso as decisões tomadas favoreçam os investidores.
A iniciativa parece ter funcionado: em 2011, a cidade de Hamburgo acordou em reduzir os seus padrões ambientais para evitar os custos da indemnização. Poucos anos depois, a mesma companhia voltou a mover uma acção contra a Alemanha devido à decisão de abandono da energia nuclear, e fê-lo novamente contornando os tribunais alemães. Muitas vezes este mecanismo tem efeito sem que nenhuma acção seja movida: a mera ameaça é suficiente para intimidar o legislador.
Um caso em que este impacto intimidador se tornou muito claro é relatado na publicação Tribunais VIP, a respeito deste sistema de justiça privada:
«Era suposto ser “a” lei francesa sobre combustíveis fósseis. No verão de 2017, o Ministro do Ambiente francês estava consciente da intensidade da crise climática e da necessidade de acções urgentes. Preparou um projecto de lei para pôr fim à extracção de combustíveis fósseis em todo o território francês, incluindo os territórios ultramarinos, até 2040 — a partir desse ano, não haveria mais extracção de petróleo e gás do solo. A França estava a dar passos no sentido de transformar em realidade as palavras do Acordo de Paris.(...)
Em Agosto de 2017, o Conselho de Estado recebeu várias cartas de lobbying relativas à Lei Hulot. Uma delas provinha de uma firma de advogados privada, Piwnica et Molinié, em nome da Vermilion, uma empresa canadiana de petróleo e gás. Com 26 locais de extracção de combustíveis fósseis em França, incluindo muitos projectos petrolíferos na região de Paris, a Vermilion é o principal produtor de combustíveis fósseis no território francês, produzindo quase 75% do petróleo nacional.
A empresa e os seus advogados ameaçavam processar a França, ao abrigo do ISDS, caso seguisse em frente com a Lei Hulot. (...). Os advogados da Vermilion sabiam que uma ameaça de ISDS de mil milhões de USD não podia ser ignorada. Tal como escreveu o jornalista Chris Hamby, galardoado com o prémio Pulitzer, após uma investigação de dezoito meses sobre o tema: “o ISDS é um sistema tão tendencioso e imprevisível, e as multas que os árbitros podem impor são tão catastroficamente elevadas, que ceder perante as exigências de uma empresa, por mais extremas que sejam, pode parecer a escolha prudente”.
E, de facto, o Governo francês parece ter-se, com relutância, vergado perante as exigências das grandes internacionais petrolíferas.
Depois das férias de Verão, tanto um Hulot revigorado como uma Lei Hulot alterada regressaram para discussão. A versão de Setembro de 2017 permitia a renovação das licenças de exploração de petróleo até 2040, o que significava que todos os projectos de extracção e exploração em vigor continuariam a ser desenvolvidos sem restrições durante mais de 20 anos.
A versão final da lei permitia até que, sob certas condições, fossem renovadas licenças de extração depois do prazo de 2040. Deste modo, a nova lei teria agora, de facto, o efeito oposto ao seu propósito inicial. E pior ainda, após a aprovação da nova lei, Hulot assinou mais licenças de combustíveis fósseis do que o seu predecessor no Ministério do Ambiente. (...)
Um ano depois da versão de Setembro de 2017 da sua lei de combustíveis fósseis, Hulot demitiu-se. Na entrevista em que comunicou essa decisão, declarou que os lobbies das multinacionais têm demasiada influência na definição de políticas ambientais.»
A iniciativa legislativa holandesa de proibir, a partir de 2030, a utilização de carvão para a produção de energia eléctrica também teve como reacção o recurso ao mecanismo ISDS para obtenção de indemnizações de milhares de milhões de euros, por parte da empresa Uniper Benelux e outras empresas multinacionais.
O que todos estes casos ISDS têm em comum — além de porem em risco o combate às alterações climáticas e ameaçarem as finanças públicas — é que ocorrem ao abrigo do acordo internacional que deu origem a mais casos ISDS (mais de duas centenas): o Tratado da Carta da Energia (TCE). Com este tratado, não são as empresas que ameaçam o clima quem têm de indemnizar a sociedade pelos graves riscos que nos impõem: ao invés, são elas que exigem indemnizações pagas pelos cidadãos se estes ousam lutar contra as alterações climáticas.
O Tratado da Carta da Energia estabelece um sistema de justiça paralelo que coloca as empresas multinacionais numa situação de privilégio face às empresas nacionais em geral, mas também ameaça as finanças públicas, a economia e a Democracia. É um obstáculo à luta contra a pobreza energética e as rendas excessivas, sendo plausível que em Portugal tenha estado associado à demissão do secretário de Estado da Energia Jorge Seguro Sanches por ter lutado com eficácia contra estas rendas.
Além disto, para o período entre 2018 e 2050, o TCE protege um volume de emissões que é cinco vezes superior ao volume que a UE pode emitir no mesmo período se quiser atingir o alvo de 1,5º estabelecido no Acordo de Paris. O TCE é completamente incompatível com os compromissos climáticos assumidos pela União Europeia e qualquer decisor político tem obrigação de saber que é impossível respeitá-los sem abandonar este acordo.
É esta a razão apresentada pelos governos espanhol, francês e alemão para abandonarem este acordo. Além destes, já abandonaram ou anunciaram a intenção de abandonar os governos de Itália, Holanda, Polónia, Luxemburgo e Eslovénia. Todos juntos correspondem a quase três quartos da população da UE e a uma proporção ainda maior da sua economia.
O ministro do Ambiente Duarte Cordeiro afirmou que Portugal está a avaliar sair do TCE, e é bom que essa avaliação seja feita muito depressa. Não apenas porque a cada ano que passa este acordo representa energia mais cara e acção insuficiente no combate às alterações climáticas, mas também porque está a decorrer um processo de alargamento deste acordo: a entrada de vários países (incluindo alguns com muita importância no sector energético nacional) está iminente e ela pode tornar muito caro e danoso qualquer atraso no abandono deste acordo.
1. O acrónimo vem da expressão inglesa Investor-State Dispute Settlement geralmente traduzida como Resolução de Disputas Investidor-Estado, mas o acrónimo usado é sempre referente ao termo em inglês.
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