Infelizmente associamos em Portugal a expressão «obsessão do défice» com a esquerda. O governo nas últimas décadas em Portugal tem promovido políticas económicas de direita (com o PSD) ou de centro-direita (com o PS) e grande parte das críticas de esquerda às grandes opções de política económica tem-se centrado na vontade de consolidar as contas públicas.
Neste texto argumento que, bem pelo contrário, a preocupação com a consolidação orçamental é a única forma de alcançar objectivos de esquerda no médio/longo prazo, e que a esquerda deveria ser mais «obcecada com o défice» do que a direita.
Mas antes importa deixar claro que a falta de preocupação com a consolidação das contas públicas – embora pareça – não é um exclusivo da esquerda em Portugal. Apesar da IL e do CH terem a inteligência política de se afirmarem partidários de «contas certas», os seus programas são completamente irresponsáveis do ponto de vista orçamental. A IL propõe cortes fiscais massivos e em vários domínios cruciais (como a saúde) defende políticas públicas que aumentariam fortemente os custos, tudo sob a ilusão de que as reduções das taxas de impostos induziriam um crescimento que levaria a um aumento das receitas. Já vimos esse tipo de políticas fazer disparar o défice e a dívida em várias ocasiões no passado, mas o recente episódio com Liz Truss foi o mais claro e elucidativo. Também importa deixar claro que fora do contexto nacional não vemos esta associação entre esquerda e um discurso de irresponsabilidade orçamental. Pelo contrário, nos EUA o partido Republicano é, sucessivamente, aquele que faz disparar os défices e a dívida, e o partido Democrata aquele que reduz os défices. Mais relevante ainda, quando olhamos para os estados sociais mais robustos e exemplares, os dos países nórdicos, verificamos que as políticas destes países se têm destacado por uma maior preocupação com a sustentabilidade das contas públicas quando comparadas com as de outros países ricos. Não é por acaso.
No entanto, ao longo das últimas décadas, os países ricos têm tido, em média, saldos orçamentais negativos. Mais relevante ainda, têm tido receitas (líquidas de depreciação) inferiores às despesas correntes. As consequências desta escolha podem ser observadas na evolução do património público:
A subida do rácio entre o património privado e o PIB não é o fenómeno que quero destacar neste gráfico. O fenómeno que quero destacar é a diminuição do património público. Existem diferentes esquerdas, umas mais estatistas que outras (o próprio anarco-sindicalismo é uma corrente de esquerda radical), mas quase toda a esquerda concorda que esta tremenda descida do património público prejudicou a sociedade. Piketty descreve-a no seu O Capital no Século XXI como sintoma de tendências estruturais que conduzem ao aumento das desigualdades, mas também como algo que vem exacerbar essas tendências, aumentando as desigualdades.
Tal como um património positivo tende a originar rendimentos, que podem aliviar a carga fiscal, um património negativo tem associados encargos, que vão acentuar a carga fiscal. Como uma proporção relevante das receitas fiscais do Estado provém de impostos sobre o trabalho, um Estado cujo património líquido seja muito negativo é um Estado que cobra impostos aos trabalhadores para pagar juros aos credores, redistribuindo do factor trabalho para o factor capital, exactamente o oposto daquilo que a esquerda tenciona fazer.
Importa reforçar isto: a evolução do património do Estado depende directamente da diferença entre as receitas fiscais (líquidas de depreciação) e as despesas correntes. Isto não é o mesmo que o saldo orçamental, mas é muito próximo. Em tese é possível o Estado ter um défice elevado e aumentar o seu património: se as receitas fiscais forem muito superiores às despesas correntes, mas o Estado estiver a endividar-se para adquirir um determinado activo (uma empresa, uma infra-estrutura, um edifício), esse endividamento pode melhorar as contas públicas desde que as receitas desse activo (ou custos que permita poupar) sejam superiores aos encargos com a dívida incorrida para o adquirir. No entanto, as discussões sobre o saldo orçamental raramente incidem sobre este tipo de investimentos, que aliás levariam ao aumento do património público e não à diminuição que temos vindo a observar. As discussões sobre o saldo orçamental incidem fundamentalmente na relação entre as receitas públicas (líquidas de depreciação) e as despesas correntes, se as primeiras devem ser, em média, necessariamente superiores às segundas ou não e que esforços devem ser encetados para que isto aconteça. De facto, verifica-se na UE uma altíssima correlação entre os saldos orçamentais e o diferencial entre as receitas (líquidas de depreciação) e a despesa corrente. Por essa razão, no resto do texto vou falar em saldo orçamental para me referir a esta diferença entre receitas e despesas, feitas que foram as devidas ressalvas.
Importa também deixar claro que esta questão se coloca em termos médios, ao longo do ciclo económico, ao longo das décadas. Não se coloca ano a ano, mês a mês. Keynes demonstrou a importância de políticas contra-cíclicas e não só a esquerda em geral concorda que deve ser esta a actuação das autoridades públicas, como também uma parte substancial da direita. Pedro Passos Coelho chocou o FMI ao querer «ir mais longe que a Troika», num contexto que era o que mais desaconselhava a consolidação orçamental. Os saldos orçamentais devem estar acima da média em momentos de maior crescimento, e abaixo da média (eventualmente negativos) em momentos recessivos. O termo «austeridade» foi popularizado neste contexto e, embora a sua definição seja ainda matéria de discussão, pareceu-me adequado para designar políticas de consolidação orçamental pró-cíclicas, um erro económico tremendo por parte dos decisores políticos na UE e em Portugal. Mas se esta ressalva se aplica a contextos recessivos, quando esporádicos, ela definitivamente não se aplica à generalidade dos anos, e muito menos a contextos como o actual, onde existem fortes pressões inflacionárias.
Dito isto, falando em termos médios, se a esquerda acredita que o património público não devia ser negativo, não devia almejar um saldo orçamental nulo mas sim um saldo orçamental positivo. E o quão positivo devia ser o saldo, depende da proporção do património total da sociedade que se acredita que devia ser público.
Algo para o que frequentemente a esquerda alerta, quando fala sobre a evolução da dívida pública, é que é possível manter um défice superior a zero sem que a dívida, em proporção do PIB, aumente. Esse défice, compatível com uma dívida constante, depende do valor da inflação e do crescimento da economia. Por exemplo, uma economia com uma dívida que é 100% do PIB e que cresce a 2% ao ano, sujeita a uma inflação de 2% ao ano pode ter um défice médio de 4%, que no ano seguinte a dívida continuará a ser de 100% do PIB. Um saldo orçamental nulo, pelo contrário, constituiria uma redução substancial da dívida quando expressa em proporção do PIB.
Este raciocínio está inteiramente correcto e não o disputo. Mas ele presume um património público negativo. Se a dívida for 100% do PIB e o Estado tiver outro património (por exemplo, valendo 150% do PIB), então se mantiver um défice de 4% o restante património público vai perdendo valor até que, no limite, o património líquido do Estado vai corresponder apenas à dívida de 100% do PIB. Se o estado mantiver, em média, um determinado défice, o seu património no longo prazo será negativo.
Mas podemos até ir mais longe: pela mesma razão que um saldo orçamental nulo aumenta um património negativo, quando expresso em função do PIB, também um saldo orçamental nulo diminui um património positivo, quando expresso em função do PIB. Em ambos os casos, o crescimento e a inflação (esta apenas no caso de património expresso em títulos nominais) tendem a aproximar o património de zero quando o saldo orçamental é nulo. Isto significa que um património público positivo constante em proporção do PIB exige, em termos médios, um superavit.
Mas, mais do que exprimir o património em função do PIB, e para evitar as incertezas em relação ao crescimento1 e à inflação2, importa pensar no património público – que assumo desejavelmente positivo – enquanto proporção do património total numa economia. Se assumirmos que o património público tem a mesma depreciação que o património privado, encontramos uma expressão3 para o saldo orçamental médio, expresso em proporção do PIB, compatível com uma determinada proporção (positiva) do património total. Concluímos, como seria intuitivo, que quanto maior quisermos que seja a proporção entre património público e património total, maior deverá ser o saldo orçamental. Substituindo os valores na expressão para a economia portuguesa concluímos que o superavit médio deverá ser cerca de 1.8% do PIB se quisermos que o património público corresponda a 10% do património total, 3.6% se quisermos que corresponda a 20% do património total, e por aí fora. Uma diferença, em média, entre receitas (no caso desta fórmula, brutas) e despesas correntes inferior a esta diferença garantirá que o património público irá corresponder a uma parcela mais pequena do património total.
Mas se a esquerda deveria, bem mais do que a direita neoliberal, lutar por saldos orçamentais positivos, isso não significa alinhar com as políticas que a direita (PSD) ou o centro-direita (PS) tem proposto para assegurar a sustentabilidade das finanças públicas. O subfinanciamento dos serviços públicos e o aumento (directo ou indirecto) da tributação sobre o trabalho têm sido as vias escolhidas para garantir que a dívida não segue uma trajectória insustentável. No entanto, não seriam essas as escolhas associadas a uma política económica de esquerda. Uma política económica de esquerda faria diferente na altura de cortar as despesas e na altura de aumentar as receitas. Para cortar as despesas a esquerda deveria apostar na renegociação das PPPs (principalmente as rodoviárias) sob ameaça de expropriação, mais do que legitimada pelo carácter excessivo e extraordinariamente inaceitável dos contratos. Para cortar as despesas a esquerda deveria apostar no combate às rendas excessivas da EDP (que já fizeram rolar a cabeça de ministros de Passos Coelho e António Costa que tiveram a ousadia de defender o interesse público). Para cortar as despesas a esquerda atacaria toda a sorte de «rendas» de que vários interesses privados têm usufruído a custo do erário público e faria um combate sem tréguas à corrupção. Para aumentar as receitas a esquerda apostaria na tributação sobre o património (de que o chamado Imposto Mortágua era um excelente exemplo), a qual tem inclusivamente recuado (veja-se, por exemplo, o fim do imposto sucessório) e na concertação internacional para combate aos paraísos fiscais e outras formas de fuga ao fisco.
Por fim, alguma esquerda obsta à necessidade de reduzir o défice ou ter saldos orçamentais positivos alegando que tudo isso resulta das imposições associadas à nossa presença no euro, a políticas que não nos favorecem por parte do BCE e que, tivera Portugal autonomia para escolher a sua política monetária, seria perfeitamente possível evitar esta necessidade de ter défices reduzidos ou saldos orçamentais positivos.
Não tenho qualquer intenção, neste texto, de defender o BCE. Por exemplo, enquanto a inflação esteve abaixo do alvo, a escolha do BCE de optar pelo Quantitative Easing em vez de outras formas de estimular a procura agregada foi uma que favoreceu o sector financeiro, encorajou muita especulação improdutiva e muita volatilidade indesejável, tendo tido impactos redistributivos perversos. Estas e outras razões justificam duras críticas à instituição. E, independentemente da actuação do BCE, não contesto que, no actual contexto, a arquitectura do euro tem tudo para ser disfuncional, na medida em que existe uma política monetária única e cerca de duas dezenas de políticas orçamentais descoordenadas. Há portanto duras críticas ao euro e ao BCE nas quais me revejo.
No entanto, é falso que a autonomia monetária permitiria escapar ao problema acima descrito, o que exigiria que a política monetária pudesse fazer milagres. Em Portugal, quer na fase final da Monarquia, quer durante a Primeira República, o país confrontou-se com crises orçamentais muito graves, com um impacto económico e social devastador, não obstante a autonomia monetária do país. E quando olhamos para os quinze países com maior dívida pública do mundo (Japão, Venezuela, Grécia, Sudão, Eritreia, Singapura, Itália, Cabo Verde, Barbados, Butão, Barém, EUA e Portugal), verificamos que apenas três deles não controlam o seu Banco Central.
Sendo verdade que a emissão de moeda permite acesso a uma fonte de receita acrescida (a chamada senhoriagem), num contexto como o actual, de elevada inflação, isso corresponderia com maior probabilidade a uma fonte de despesa acrescida, já que esse enquadramento exigiria retirar moeda de circulação por via orçamental quando a inflação se encontra acima do alvo. Mas mesmo que a inflação estivesse abaixo do alvo, a receita adequada a que o alvo fosse atingido por via da senhoriagem nunca poderia ser muito elevada, precisamente porque a via orçamental é muitíssimo mais eficaz no estímulo da procura agregada do que medidas como o Quantitative Easing, como nos mostrou a recente experiência nos EUA com os cheques de 700$ e 1400$ dólares. Independentemente do montante dessa receita, o enquadramento é o mesmo: somem-se as receitas (incluindo essa), subtraiam-se as despesas, e se o saldo não for, em média, positivo, o património público não será uma proporção positiva do património total.
Em suma: existem diferentes esquerdas e diferentes perspectivas sobre qual deverá ser a proporção de património público em relação a todo o património existente. Alguma esquerda, na qual me revejo, tende a ter uma perspectiva menos estatista, não tendo a aspiração de que o património do Estado seja uma proporção elevada da capacidade produtiva e da riqueza total, antes priorizando a vontade de que a riqueza não estatal esteja distribuída com algum grau de equilíbrio, sendo até relevantes formas de propriedade colectiva não estatal tais como cooperativas e outro tipo de organizações não empresariais. Mas mesmo a esquerda menos estatista considerará negativo que o património do Estado seja, em termos líquidos, negativo. A este nível Portugal destaca-se no contexto europeu porque além de ter uma das dívidas mais elevadas da UE, é dos países onde as empresas públicas representam uma menor proporção da economia. O património público português será dos mais baixos de toda a UE.
Pelo contrário, o Estado português deveria ter um património positivo que fosse uma proporção, não elevada mas razoável, do património total. Mas se a esquerda quer atingir este objectivo, então – mais ainda que a direita – , deveria defender políticas que garantissem um saldo orçamental positivo. Não devia criticar a preocupação de minorar os défices como uma obsessão irracional, ou mal intencionada. Esta discrepância entre os objectivos de médio/longo prazo e a actuação de curto prazo é profundamente míope e lembra a forma irresponsável como a direita encara as questões de sustentabilidade ambiental.
1. Nada nos garante que o crescimento se vai manter positivo por muito tempo no actual contexto demográfico e de caos climático - e salto desde já a questão sobre se deve ou não.
2. Cujo impacto no património depende da proporção de numerário e títulos (não indexados) no mesmo, que desconheço.
3. A expressão será SO = θ (Ỹ - C - G)/Y onde SO é o saldo orçamental, Ỹ o rendimento disponível bruto, C o consumo privado, G o consumo público, e Y produto interno bruto. θ corresponde ao rácio entre o património público e o património total nessa economia.
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